sábado, 7 de janeiro de 2012

Teorias e realidade

Amigos,

Dia desses eu escrevi sobre a partícula “bóson de Higgs”, - cujo texto pode ser lido aqui -, e sobre o polêmica de chamá-la “partícula de Deus”. Naquele texto, eu comentei que as teorias científicas não são verdades absolutas, mas modelos, tentativas de explicar fenômenos observados na natureza. Comentei também que estes modelos estão sujeitos ao conhecimento da humanidade à época de seu desenvolvimento, e que as teorias podem ser modificadas ao longo da história. Citei o exemplo do fenômeno da gravidade, que Isaac Newton explicou no século XVII através de sua teoria da Gravitação Universal; no início do século XX, Albert Einstein forneceu uma explicação bem diferente para o mesmo fenômeno, através de sua teoria da Relatividade Geral.

Eu li, há algum tempo atrás, um livro de um sacerdote cientista, Pe. William R. Stoeger, SJ, do Observatório do Vaticano. O livro chama-se “As Leis da Natureza - Conhecimento humano e ação divina”. Alguns conceitos importantes são explicados logo no início do livro, e aprofundados ao longo do mesmo. Um tópico diz respeito ao diálogo entre ciência, filosofia e teologia. Estes três campos do conhecimento são complementares. O autor trata bem do assunto, até por possuir formação em todos eles, de forma que consegue transitar confortavelmente entre os três. Outra questão trata justamente sobre a imperfeição e a transitoriedade das teorias científicas. O autor alerta para que não sejam confundidos: a natureza, e as teorias científicas que a descrevem ou representam. No livro, há uma comparação bem interessante e didática, sobre a relação entre um fenômeno da natureza e a teoria científica que tenta explicá-lo, com uma maçã e um desenho desta; confundir a natureza com as teorias científicas que a representam, seria como confundir uma maçã com o seu desenho...

Os cientistas estão sempre tentando entender melhor os fenômenos naturais, e a cada vez que conseguem compreendê-los melhor, é comum que aperfeiçoem as teorias existentes, ou até mesmo façam propostas de teorias bem diferentes das vigentes até então. Voltando ao exemplo da gravidade, Newton explicou a atração entre dois corpos como uma força proporcional a ambas as massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que os separa. Ainda hoje, este conceito é ensinado nas matérias de física básica. Além disso, é ensinado também que um corpo cria um campo gravitacional - um campo de forças - em seu entorno, através do qual pode atuar a distância sobre outro corpo.

Já Einstein explica a gravidade como consequência da deformação do espaço-tempo no entorno de um corpo, o que seria a causa da atração mútua entre os corpos. Uma forma bem didática de entender este efeito é representar apenas o espaço, e em duas dimensões, como uma rede ou tecido; a figura a seguir ilustra bem essa ideia. Na ausência de um corpo, o espaço (representado pela rede) permanece plano; na presença de um corpo, é como se este deformasse a rede, da mesma forma como uma bola relativamente pesada deformaria uma cama elástica, causando uma depressão. Qualquer outro corpo colocado em sua bacia de atração (próximo à depressão), seria atraído em direção à bola pesada; não devido a alguma força que atue à distância, mas por causa da deformação criada na rede. Quanto mais massivo o corpo, maior a depressão criada por este mesmo corpo.


Podemos imaginar o sistema Sol, Terra e Lua como, por exemplo: uma bola de boliche, mais pesada (representando o Sol), uma bola de tênis (representando a Terra), e uma bola de gude (representando a Lua). Cada uma cria uma depressão diferente, de acordo com seu “peso” (na verdade seria massa). A Lua se mantém girando em sua órbita em torno da Terra, na depressão criada por esta última; já a Terra se mantém girando em sua órbita em torno do Sol, na depressão (bem maior) criada por este. Esta analogia consta no livro "Big Bang", de Simon Singh.

É uma explicação simplificada, mas bem útil ao entendimento, principalmente para quem não é físico (assim como eu, mas não espalhe isso por aí...). Na realidade, esta rede é o espaço-tempo (espaço com três dimensões, mais uma para o tempo). Claro que não seria possível representar uma rede quadridimensional... logo, a representação apenas do espaço, e mesmo assim em duas dimensões somente, ajuda muito a entender a ideia por trás da Relatividade Geral. Entendeu? Então sinta-se um gênio!

Vejam como são explicações tão diferentes para um mesmo fenômeno! Qual delas corresponde mais à realidade...? Talvez ninguém consiga responder. A nova teoria proposta por Einstein não significa que a sua antecessora, proposta por Newton, esteja errada. Aliás, esta ainda é muito usada atualmente. Quando não há nenhum corpo massivo por perto, como o Sol, podemos fazer previsões usando a teoria da Gravitação Universal de Newton, que funciona muito bem. Já quando há corpos massivos... a teoria de Newton começa a falhar, e é necessário usar a de Einstein.

Aliás, foi assim que Einstein comprovou sua teoria, no Nordeste do Brasil, em 1919. Estrelas foram observadas no entorno do Sol, durante um eclipse (de modo que pudessem ser observadas, sem ser ofuscadas pelo brilho do Sol). A luz emitida pelas estrelas é desviada, ao percorrer uma trajetória passando nas proximidades do Sol. O desvio deve-se à deformação do espaço-tempo no entorno do Sol, causando uma ilusão de ótica, conforme ilustrado pela figura seguinte.


Curioso, não? Será possível que duas teorias tão diferentes assim possam coexistir...? Sim, podem! Elas não correspondem exatamente ao fenômeno que tentam explicar, mas são representações; da mesma forma que um desenho de uma maçã não é uma maçã... Cada teoria funciona dentro de seu domínio, de seu campo de atuação. Pode ser que daqui a mais tempo, alguém proponha uma teoria mais geral ainda que a de Einstein. Aliás, parece que estão buscando uma mesmo, que una (ou reconcilie) a Relatividade Geral à Mecânica Quântica. Mas não me atrevo a falar sobre isso aqui, sem ao menos consultar melhor alguma referência de divulgação científica (que talvez seja o melhor que eu consiga entender...). A última teoria que citei (quântica), soa muito estranha até mesmo para físicos, quanto mais para não físicos...

Bem, vamos conversar então sobre uma experiência pessoal minha, mais acessível ao entendimento. Lembro de um professor de Física III (que trata sobre eletricidade), tentando incutir em nós justamente esse conceito da imperfeição e transitoriedade das teorias científicas. Ele deu um exemplo interessante, dizendo algo como: “Imagine que haja dois orifícios no quadro negro. Só conseguimos enxergar até o quadro; atrás do quadro e da parede, não sabemos o que acontece. Jogamos uma bola de uma cor, - digamos, azul -, pelo orifício da esquerda; logo depois ela sai pelo da direita. Jogamos agora pelo da direita, e logo depois ela sai pelo da esquerda. Jogamos uma bola de outra cor por um dos orifícios, e ela sai pelo outro; e assim com todas as bolas: jogamos uma bola de uma dada cor por um dos orifícios, e uma bola da mesma cor sai pelo outro. Qual seria a explicação para o fenômeno?”. Ele continuou: “Uma teoria que explicaria bem estas observações é que houvesse um tubo interligando ambos os orifícios, por trás da parede, de maneira que, quando jogamos uma bola por um deles, ela logo sai pelo outro.” Então ele provocou: “Imagine que, de repente, joguemos uma bola de uma cor por um dos orifícios, e saia uma bola de outra cor pelo outro; ou então que uma bola saia pelo mesmo orifício em que jogamos; ou que joguemos uma bola que não saia; ou que comecem a sair bolas sem que tenhamos jogado nenhuma... Então a teoria não é mais válida; talvez houvesse alguém atrás do quadro pegando as bolas que jogávamos por um dos orifícios, e devolvendo pelo outro. Até que resolveu brincar com a gente e trocar tudo...”

Moral da estória: uma teoria científica é apenas uma tentativa de explicar os fenômenos observados na natureza; não correspondem exatamente aos fenômenos em si. Usando o exemplo anterior, do meu professor, só conseguimos acessar a realidade até o “quadro negro”... dali em diante não conseguimos mais acessar, até o momento...

No texto anterior, sobre o bóson de Higgs, eu comentava que o Modelo Padrão é, como diz o nome, um modelo (uma representação), que tenta explicar os fenômenos relacionados a partículas e campos. Qual a realidade última por trás dos fenômenos... por ora, não sabemos exatamente. Logo, se encontrarem o bóson de Higgs, ponto para o Modelo Padrão; caso contrário, a teoria terá que ser adaptada, ou mesmo uma explicação completamente diferente poderá ocupar o seu lugar.

Já a nossa fé... continua inabalável! Teorias são teorias. A verdade última está bem além delas.

Espero que tenham gostado! Até a próxima!

Este texto é fruto também de consultas a algumas referências:

- William R. Stoeger, As Leis da Natureza - Conhecimento humano e ação divina, publicado pela Paulinas, 2002;

- Simon Singh, Big Bang, Editora Record, 2006.

Sobre a comprovação da teoria da Relatividade Geral de Einstein no Brasil, consultar:

- Alfredo Tiomno Tolmasquim, Einstein - O viajante da relatividade na América do Sul, Vieira & Lent, 2003.
Este livro trata sobre a viagem de Einstein à América do Sul, de maneira geral (modificado em 23/06/2012).

- Jean Eisenstaedt e Antonio Augusto Passos Videira, “A prova cearense das teorias de Einstein”, Ciência Hoje, V. 20, N. 115, novembro de 1995.
Quem não tiver acesso ao artigo acima, pode consultar textos disponibilizados no MAST, aqui.

(Trecho acrescentado em 23/06/2012):
Para quem se interessar mais pelos conceitos envolvidos na teoria da Relatividade, de uma forma mais acessível ao público em geral, sugiro ler o livro:

- Richard P. Feynman, Física em 12 lições - Fáceis e não tão fáceis, Ediouro, 2005.
Richard Feynman, prêmio Nobel de Física, era conhecido por seu estilo nada convencional de ministrar palestras. No início dos anos 60, foi convidado a ministrar séries de palestras sobre física, a fim de motivar melhor os alunos dos primeiros anos da área de exatas na Caltech. Suas palestras foram gravadas, e o livro citado acima é uma compilação de uma seleção daquelas palestras. Existe uma coleção, mais aprofundada, a Feynman Lectures on Physics, mais técnica; porém, o primeiro livro citado é mais direcionado ao público em geral. Bom proveito!

(Trecho acrescentado em 29/08/2012):
Quanto ao desvio da luz das estrelas em trajetórias passando próximo ao Sol, a física Newtoniana também previa um desvio; porém, o desvio previsto pela teoria da Relatividade Geral era diferente, e as observações comprovaram que a previsão desta última (Relatividade), era a correta.

(Modificações em 21/03/2019).
 

3 comentários:

  1. Orlando Augusto, sobre o seu comentário, a analogia com a bola de boliche tem no livro "Big Bang", de Simon Singh, que eu já tinha citado no texto sobre om Pe. Georges Lemaître, SJ. Folheei o livro agora e encontrei a analogia. Vou citar neste último texto a referência deste livro.

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  2. Muito legal!!! (Comentei num texto sobre a bóson de Higgs no ano passado e só hoje vi a sua resposta, porque você me mandou uma mensagem no facebook assim que respondeu minha pergunta, me encaminhando para esse texto acima!) Parabéns mais uma vez pelo trabalho!

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    1. Patrícia, achei que você tivesse visto minha resposta à época. Que bom que gosta desse assunto também! Seja bem-vinda ao blog, procurarei responder a comentários e perguntas, tão logo quanto possa. Quanto ao assunto "Teorias e realidade", há um novo texto semelhante, de 1º de abril deste ano: "Teorias e realidade (2)". Criei uma página para o blog no facebook: http://www.facebook.com/blogcienciaefe, onde compartilho cada novo texto do blog publicado no blogspot. Agradeço pelo estímulo!

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